Nota de repúdio

26/03/2014 11:01

A coordenação do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social manifesta o repúdio a ação arbitrária, truculenta e desproporcional da polícia federal e militar no episódio ocorrido no dia 25 de março, no campus da UFSC.

 

Desde os acontecimentos do dia 25 de março na Universidade Federal de Santa Catarina, diversas entidades manifestam-se sobre o ocorrido.Veja algumas das manifestações:

http://www.portalcfh.ufsc.br/2014/03/28/entidades-manifestam-se-sobre-acao-policial-na-ufsc/

http://www.portalcfh.ufsc.br/2014/04/01/mocao-de-repudio-as-acoes-violentas-contra-a-comunidade-academica-da-ufsc/

 

MANIFESTAÇÃO DOS PROFESSORES DO DEPARTAMENTO

OS INCIDENTES NA UFSC: JUÍZOS LEVIANOS, CONDUTAS DE EXCEÇÃO

No dia 25 de março de 2014 a Universidade Federal de Santa Catarina foi alvo de violenta ação da Polícia Federal e da tropa de Choque da Policia Militar. O saldo da ação foi estudantes feridos por balas de borracha e estilhaços de bombas de gás lacrimogênio; dezenas de crianças dos dois centros de educação infantil da Universidade atingidas por gás lacrimogêneo; docentes, alunos, servidores técnicos, o Procurador Federal da UFSC, a Presidente da Comissão de Direitos Humanos da ALESC, Diretores do Centro de Filosofia e Ciências Humanas – CFH – e representantes da Reitoria todos atingidos por spray de pimenta e gás lacrimogênio, além de serem alvo de insultos por policiais federais e intimidação física. O clamor pela apuração das responsabilidades por tal atuação tem sido respondido por alarmantes ameaças de recurso à lei de segurança nacional para indiciar a Direção do Centro de Filosofia e Ciências Humanas da UFSC por incitação à desordem.

O que aconteceu na UFSC naquele dia e por que é essa a resposta que nos é dada?

Situações excepcionalmente graves podem muitas vezes pedir medidas de exceção. Terremotos, furacões, inundações e outros fenômenos que tais estão inegavelmente entre estas situações. Mais difícil, porém, é identificar, sem ambiguidade ou arbítrio, quais circunstâncias sociais e politicas de gravidade iminente justificariam alguma ação excepcional – sabendo também ser sempre mais prudente que esse “excepcional” estivesse previa e democraticamente disposto, evitando as conhecidas surpresas.

Entretanto, para alguns setores de nossa comunidade, de nossos meios de comunicação e até mesmo de parcela, oxalá pequena, de nossa própria Universidade, grave seria, e sem qualquer espaço para dúvida ou reflexão, a situação do Centro de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Santa Catarina. Esta é uma opinião que tais setores parecem partilhar com parcela ruidosa do aparelho policial, sempre a postos para ganhar atenção da mídia com ações tão espetaculares quanto violentas e tão ineptas como ineficazes.

É esta suspeita de que estaríamos diante de grave situação no CFH da UFSC o que se entrevê no uso de expressões como “antro de criminosos” e “república de maconheiros”, usadas e repetidas por alguns porta-vozes que, imagina-se, deveriam saber o que dizem quando dizem algo tão forte, e quando comentam os mais que lamentáveis incidentes do dia 25 de março. Afirmam uma situação de desvio e decadência que deveria ser enfrentada com pulso firme pela reitoria ou por qualquer outra das autoridades da instituição.

Mas não é claro de que fonte vêm tantas certezas!

O que dizem fontes autorizadas para avaliações acadêmicas – instituições como a CAPES e o CNPq, por exemplo – é que no Centro de Filosofia e Ciências Humanas da UFSC se faz bem, muito bem até, exatamente o que deveria estar sendo feito num Centro como ele: faz-se história, geociências, sociologia, antropologia, museologia, psicologia, filosofia, etc., e com qualidade e reconhecimento nacionais e internacionais.

O Diretor do Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Paulo Pinheiro Machado, rociado com gás de pimenta durante os incidentes, e cujos esforços de conciliação foram menosprezados pelo tal delegado da Polícia Federal, tem uma densa, cuidadosa e respeitada obra sobre história social do campesinato e movimentos sociais, de enorme importância em sua área, e é um professor de reconhecidos méritos e muitas homenagens desde o início de sua carreira. A Vice-Diretora, Sônia Maluf, acusada de desacato, obstrução à Justiça e incitação à rebelião, tem também uma ampla e sólida produção como pesquisadora, e que não consiste em panfletos ou manifestos incendiários, mas em livros e artigos onde se documentam e analisam, com argumentos cuidadosos, temas como a atenção psiquiátrica, o feminismo ou as novas religiões; é também docente respeitada e admirada por alunos e colegas.

No Centro de Filosofia e Ciências Humanas da UFSC se faz o que se espera de um centro de ensino superior e de pesquisa qualificada e relevante, e onde a imensa maioria dos estudantes desenvolvem e concluem normalmente seus estudos. Mas, mesmo assim, há também aqueles que acham ­­­– e espalham rumores – de que o CFH, a exemplo de outros centros de humanidades mundo afora, é a grande gruta onde se encontram todas as perdições. Talvez desejassem que o mundo fosse um lugar singelo e inócuo, ordenado como uma série estatística, planejado como um projeto de engenharia ou asséptico como uma sala cirúrgica, e culpam os profissionais das Ciências Humanas pelo fato de que ele, o mundo mesmo, a matéria sobre a qual nos debruçamos, seja confuso, conflituoso, cheio de desordens e alguma impureza.

O caso é que os fatos do dia 25 de março partiram desse juízo leviano, com uma série de opiniões irrefletidas e que rapidamente se desdobraram numa determinação vigorosa de agir. Talvez não fosse tão grave se tudo não viesse aliado à conduta exagerada, inflacionária, que tem que continuar sua escalada para tentar sustentar  aquilo que de fato, e logo de saída, já era insustentável. Uma ação discreta, modesta e recatada da operação estaria garantida tivesse aquele delegado da Polícia Federal aceitado o acordo proposto pela Direção do CFH.

Mas a atuação da Polícia Federal no dia 25 de março já começou num ponto mal medido, e escalou até um lugar exorbitante. Uma vez cortados eventuais aumentos de qualquer notícia contada muitas vezes, o que foi encontrado no “maldito antro de criminosos” não foi um laboratório clandestino de droga sintética, nem um lote de quinhentos quilos de cocaína escondido no “bosque sagrado”, mas uma situação para a qual nem mesmo a Lei, como o princípio da garantia da Ordem, prevê a prisão manifestamente almejada pela ação da Polícia Federal: “temos de levar alguém preso”, foi a frase chave dos policiais para, na resistência, desencadear a ordem de ação para a tropa de Choque da Policia Militar.

E foi para isso então todo aquele aparato de carros descaracterizados, policiais à paisana, tocaias e campanas, bravatas e exibições de valentia; e foi para isso também que viu-se a seguir a manobra militar de uma tropa de choque treinada como a velha infantaria romana fazia para o enfrentamento de seus inimigos. Balas de borracha, bombas de gás lacrimogêneo, sprays de pimenta, e tudo o mais que talvez fossem necessários para estourar um centro continental de narcotráfico. Mas, o atrapalhado desmanche da dita “República dos Maconheiros” não revelou a existência de nada disso.

Qualquer um poderia facilmente comprovar, com uma conta simples, que o dinheiro público gasto naquela operação de suposta garantia da Lei e da Ordem (ahh, a “Ordem”) foi muito mal empregado ali, e justamente por causa de um juízo leviano sobre o que acontece naquele lugar. Mas, como dizem a toda hora os economistas, a inflação é um bom modo de camuflar erros de decisão ou de gestão, ou condutas ainda piores: em lugar de reconduzir o episódio a seus termos reais, os responsáveis os inflam, transformando os mal ajambrados fatos num levante contra a segurança nacional, até enterrar o incômodo fato de que, na hora da produção de provas tangíveis, a pretensa situação gravíssima que deu azo à operação toda não pode ser comprovada.

Se a Polícia Federal tem, como disse o seu porta-voz, ciência do que acontece nesse “antro de criminosos”, naquela “República de Maconheiros” em formação, seu dever seria transformar essa sabedoria em relevantes apreensões, prisões e provas regulares. Se isso não é possível (porque tudo aquilo existe apenas numa fantasia desmesurada) então é porque não serve para querer transformar o antro de criminosos num grupo de baderneiros. “Mas tudo aconteceu porque professores e alunos impediram que a polícia cumprisse sua função!”. Não!, qualquer cidadão sabe que a autoridade não está no indivíduo que a reivindica, mas num agente público que se comporta como tal Autoridade, seguindo os protocolos legais e evitando toda conduta que possa ser confundida com outro tipo de ação; sem esta condição, uma irrupção qualquer de homens armados poderá causar baderna em qualquer ambiente, seja universidade, igreja ou convenção. Sabe-se que exercer a autoridade é, antes de tudo, exercê-la com a devida ciência das consequências de seus atos e na exata medida das necessidades. Qualquer outro modo de agir pode implicar sua transformação em espetáculo de poder desmedido daqueles que querem se projetar acima da própria lei.

Exigir que a autoridade seja exercida dentro dos limites da lei – que é o que devemos esperar de todo bom cidadão quando investido de algum poder – é também uma condição de não incitar pessoas à desordem. Por outro lado, a obrigação de proteger aqueles sob nossa responsabilidade das consequências (infelizmente tão familiares nestes tempos recentes) de ações que distorcem a lei, não é apenas obrigação daqueles que exercem cargos administrativos dentro de uma instituição de ensino, mas deve ser partilhada por todo Professor.

Nem o Professor Paulo Pinheiro Machado, nem a Professora Sônia Maluf reagiram à ação de qualquer autoridade, mas sim contra uma estranha e esquisita demonstração de um uso torpe da autoridade. E isto é de fácil constatação, bastando se debruçar sobre a sequência completa dos fatos e acontecimentos, profusamente testemunhados e documentados, em lugar de tirar conclusões de um videoclipe editado dos momentos mais espetaculares, que apresenta em ordem inversa o desenrolar dos acontecimentos. Deve-se reparar não apenas no que aconteceu, mas também prestar atenção naquilo que não aconteceu e no que poderia ou deveria ter acontecido; note-se, principalmente, a ordem linear que levou da torpeza de alguns ao exagero e à confusão de muitos.

Infelizmente, no dia 25 de março a Polícia Federal encenou no Bosque no Centro de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Santa Catarina um verdadeiro estado de exceção que, se fossemos adotar a mesma leviandade de juízo demonstrada por aquele agente público, nos faria pensar que velhos hábitos da ditadura voltaram com tudo – algo que ninguém na Universidade pode desejar e que, confiamos, poucos, muito poucos são aqueles que de fato torcem para seu retorno. Não devemos esquecer que temos testemunhado em tempos recentes a crescente criminalização de movimentos populares, desde as reivindicações dos coletivos indígenas até às demandas por transporte público de qualidade por jovens urbanos. E tudo pode se tornar ainda mais assustador se aceitarmos que a ação de Professores, no exercício crítico de seu papel como educadores, volte a ser ameaçada pela invocação da extravagante lei de segurança nacional. Não nos esqueçamos  de que é contra essas ameaças que se forjaram os princípios da independência, da autoridade e da estabilidade da Cátedra, da Autonomia e da inviolabilidade de um campus universitário por qualquer ente externo.

É necessário, portanto, que denunciemos sempre esses abusos, para que fiquem como exemplos de atos de exceção que não podem jamais voltar a se transformar em norma de ação do Estado, nem de sua relação com a Universidade.

Professores do Departamento de Antropologia

Centro de Filosofia e Ciências Humanas – CFH

Universidade Federal de Santa Catarina