ANTROPOLOGIA EM CONTÁGIO

Publicações de discentes do PPGAS e docentes do Departamento de Antropologia da UFSC refletindo sobre experiências em tempo de pandemia.  Apresentadas de diversas formas, as reflexões estão relacionadas às nossas pesquisas, a experiências de nossas interlocutoras e aos diversos modos de produção, articulação e compartilhamento de experiências relacionadas à epidemia do COVID-19.

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Caderno Textos e Debates nº 20/2020 – NUER/UFSC – Caderno Textos e Debates

Relatos de um Antropólogo em isolamento no terreiro de Umbanda – Igor Luiz Rodrigues da Silva / Doutorando PPGAS-UFSC / Pesquisador colaborador IBP

Sobre a chegada do Covid-19 ao sul da Bahia: relato de uma antropóloga em campo – Amanda Rodrigues / Doutoranda PPGAS-UFSC / Pesquisadora colaboradora IBP

Articulações e aprendizados com a Frente Indígena e Indigenista de Prevenção e Combate do CoronavÍrus (COVID-19) – Terras Indígenas da Região Sul do Brasil: uma entrevista com Joziléia Kaingang – Valentina Nieto / Pós-Doutoranda PPGAS / Pesquisadora colaboradora IBP

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ARTIGO

Coronavírus como força de mercado e o fim da sociedade

Por Letícia Cesarino

Professora Adjunta no Departamento de Antropologia e no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGAS) da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

Introdução:

O renascimento da sociedade, ou seu enterro definitivo?

Se há algo de extraordinário que a atual pandemia do covid-19 parece ter feito, foi o premier britânico Boris Johnson voltar atrás no slogan thatcheriano ao afirmar em um vídeo, logo antes da sua internação por covid-19, que “existe sim sociedade”. Poucas semanas antes, suas afirmações tinham ido num outro sentido, o de defender a imunidade de rebanho. Diferente das metáforas militares talvez mais frequentes, a lógica subjacente da estratégia inicial de Johnson vê o vírus fundamentalmente como uma força de mercado: a relação risco-benefício da pandemia não justificaria os custos econômicos, pois o vírus sacrificaria prioritariamente “apenas” aqueles – idosos, doentes crônicos, vulneráveis – que já são um passivo para a sociedade. Esse raciocínio, onde meritocracia, eugenia e produtivismo se misturam perigosamente, pressupõe uma equivalência entre sociedade e mercado, assim como a centralidade do divisor produtor-parasita: ambos pilares fundamentais da gramática neoliberal contemporânea (HoSang e Lowndes, 2019).

Assim como ocorreu na crise financeira de 2008, alguns se apressam em cravar um prognóstico sobre se a atual pandemia seria um sinal de que estaríamos nos aproximando dos limites do capitalismo neoliberal – ou se, pelo contrário, do seu acirramento. Mas para além dessas e outras performances oraculares comuns a segmentos acadêmicos altamente midiatizados, sabemos que as relações entre a atual pandemia e a lógica neoliberal só podem ser multifacetadas e, pior, ainda emergentes. Para começar a endereçar esse cenário é preciso ir além de noções senso comum do que seja o tão falado neoliberalismo. Como o capitalismo em si, o que chamamos de neoliberalismo não é uma ideologia fixa: embora mantenha uma continuidade com o modo como foi sistematizada por Hayek e outros no início do século passado, foi sendo co-produzida com contextos emergentes como o que vivemos hoje, inclusive sendo modulada por com outras forças sociais. Como apontam as teorias de sistemas dinâmicos, na natureza e na história não existe nem reversibilidade, nem novidade ex nihilo, mas adaptação e co-emergência: provavelmente não estamos às portas nem do enterro definitivo da sociedade pela razão neoliberal (Brown, 2019), nem da sua ressureição da tumba do keynesianismo e do trabalho fordista. Onde estamos, afinal?

Leia na íntegra emhttps://www.antropologicas-epidemicas.com.br/post/coronav%C3%ADrus-como-for%C3%A7a-de-mercado-e-o-fim-da-sociedade.

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ARTIGO

O que faz um antropólogo isolado em um Ilê?

Igor Luiz Rodrigues da Silva[1]

Primeiro sábado do mês de maio, mês dedicado aos Pretos e Pretas Velhas na Umbanda e desde que a quarentena começou (isolamento social), é aqui que me encontro, no GUESB (Grupo União Espirita Santa Barbara), e por isso mesmo, esse texto ou reflexão parte e se contextualiza a partir deste ambiente sagrado.

Longe de ser um texto altamente rebuscado e com uma analise profunda sobre a pandemia do Covid-19, este relato se estabelece a partir dos encontros provocados pelo silêncio e alteridades marcadas pela fé e conflitos de mundos. Neste sentido, trata-se de exteriorização dos sentimentos que dialogam com o isolamento e com o ser umbandista.

Ano passado, eu propus aos meus e minhas colegas do PPGAS-UFSC, que organizavam comigo mais uma jornadas antropológicas, o tema: “Antropologia, vidas em ebulição e mundos em ruínas…” com uma justificativa que dizia mais ou menos o seguinte:

“Queremos chamar atenção para toda uma onda de lama, de pó, de destroços, desmatamentos, poluição, chacinas de corpos de mulheres, indígenas, quilombolas, negros e LGBTI. E dos soterramentos de vidas, paisagens e tradições. Bem como a retirada de direitos e da profunda empatia pelo ódio e pela inverdade.

O mundo, principalmente as nossas terras subdesenvolvidas e dentro destas o Brasil têm suas ruas e avenidas manchadas de sangue, cobertas por água e esgotos que mais parecem rios, levando por onde passam, carros e mais corpos. Justiça escolhe lados, desequilibrando a balança da igualdade, rasga o que nos resguarda e cria mais insegurança e medo na população. São famílias inteiras perdidas nas encruzilhadas das fronteiras, morrendo aos montes, inclusive de fome e sede, tendo seus corpos dilacerados por tiros, bombas e granadas. Barcos e navios afundam. Corpos boiam e se perdem na imensidão dos oceanos.

Regimes totalitários violando liberdades e direitos, enquanto bombas destroem casas, vilas e cidades inteiras, mundos em ruínas, pó e fumaça são sinais da destruição. Mundos virtuais viram, por excelência, verdadeiros campos minados para a intolerância religiosa, racismo, LGBTfobia, machismo, capacitismo e xenofobia. Os espaços cibernéticos viraram lugar sem lei, sem justiça, sem punição, terreno fértil para ataques contra a dignidade, propiciando a banalização da vida e da morte.

A livre expressão artística vira caso de polícia, ganha status de crime e linchamento público. A dignidade é corroída dentro das salas de aula, em leitos de hospitais. Perdemos vidas, tudo em nome da burocracia, mas não há limites para a corrupção. Universidades públicas são atacadas, a Ciência achincalhada, perdendo todo o valor. As Ciências Humanas têm seu papel e status questionado, a Antropologia é cada vez mais alvo do poder público e tem seu papel científico desvalorizado.

Professores e professoras têm sua condição de ensino na mira dos alunos, que com celulares e câmeras nas mãos, restringem a liberdade. É a Escola Sem Partido, em nome da moral, dos bons costumes, da família tradicional brasileira, querendo acabar com a suposta “ideologia de gênero” e assim destrói o poder transformador da educação.”[2]

Diante dessa conjuntura, que naquele momento parecia já bastante caótica, diante dos nossos olhos, despertando em nós tanta desesperança, tanta incapacidade de respostas, tanta confusão em nossos dias dentro do programa, algumas perguntas foram cruciais para dá um norte na nossa proposta:

“Como então, a Antropologia deve se comportar diante desses emblemáticos e complexos sistemas, mundos, vidas em ruínas? Pensar e repensar o papel da Antropologia nesse mundo em ruínas, também é repensar nossas próprias práticas de pesquisa, nossos comportamentos, nossos papéis e modos de viver sobre e com ruínas.

Quais os impactos, as contribuições que damos a Antropologia e as sociedades, coletividades com as quais dialogamos e interagimos? Quem de nós, antropólogos e antropólogas, ao olhar do futuro para o hoje, ousará dizer que em meio ao mundo em ruínas, permaneceu estático as dores da vida humana? Quem ousará dizer que forneceu as vidas humanas, a Antropologia, novos meios de sobreviver e resistir em meio aos ataques?

Estamos sendo chamados a experienciar novos movimentos epistemológicos, como o corpo em constante movimento, criando novos passos, danças, como os sons e as músicas que se mesclam em novos ritmos, como as formas de plantar e colher da agricultura, que se reinventa a fim de permanecer nos alimentando sem poluir mundos, corpos, espíritos e vidas humanas e não-humanas.”

Cruzar esses mares turbulentos é a vida em movimento, movimentos em ruínas, ruínas estas que colaboram para os rearranjos das nossas próprias vidas, práticas, relações multiespécies e deslocam políticas locais e globais, mas também tem produzido o fortalecimento dos grupos contra hegemônicos que lutam por justiça social, direito à terra, a suas práticas culturais e aos recursos naturais, como sendo condição fundamental a existência humana e vida no planeta.

Foram dias debatendo em conjunto o que queríamos estabelecer enquanto discussões e mensagens durante os três dias de evento e qual o papel da antropologia neste contexto que estávamos vivendo, principalmente com o governo de extrema direita que começara a governar o nosso país e já estava colocando em cena todo o seu arsenal de ódio e destruição das nossas conquistas mais fundamentais.

O que a gente não imaginava era que três a quatro meses depois, as bombas, as imigrações, poluição da costa nordestina daria lugar a um vírus, e aí as ruínas do antropoceno alavancadas pelos grandes empreendimentos globais, industriais e tecnológicos, estavam agora submetidas a um agente não humano, cuja origem por algum tempo permaneceu inacessível e que semanas mais tardes, começava a nos questionar mais uma vez sobre o nosso papel enquanto pesquisadores, nos obrigando a parar nossas pesquisas, nossas idas e vindas a campo, as nossas atividades em laboratórios, salas de aula, etc. Nos obrigando a fazer movimentos contrários já estabelecidos em nossas costumeiras rotinas.

Quando o Covid-19 começou a se proliferar, estava finalizando a pesquisa de campo que estou desenvolvendo junto ao Rio São Francisco e pensando questões do antropoceno, relações multiespécies, paisagens, perturbações, ruínas, ambientes, praticas e habilidades, humanas e não humanas. Toda a pesquisa foi feita durante os anos de 2018, 2019 e inicio agora de 2020, desde a foz do rio (com menos visitas e estabilidade), até a minha cidade natal (Pão de Açúcar), que fica entre a foz e a hidroelétrica de Xingó, no estado de Alagoas.

Semanas depois, já tendo terminado a pesquisa, em março, estava com meu retorno agendado para Santa Catarina, no dia 20 do mesmo mês, retorno que até o dia de hoje, quando escrevo este relato, não aconteceu, por causa de cancelamentos de voos, remarcação de passagens, também um pouco de medo e insegurança.

Quando o isolamento começou aqui em Alagoas, eu já estava na capital (Maceió), pronto para desembarcar em Florianópolis a fim de concluir a ultima fase do processo de obtenção do doutorado, que é a escrita, qualificação e defesa de tese. Isolado aqui em Maceió, não pude nem ir e nem voltar para a casa dos meus pais, que também se localiza na cidade de Pão de Açúcar, local sede do campo (e lá se vão dois meses). O governo do estado tem estabelecido vários decretos, que entre outras medidas, proíbe a circulação de transportes de passageiros intermunicipais, impossibilitando que eu fizesse e ou ficasse em isolamento social junto dos meus pais.

Entre ficar em casa, com meus irmãos que continuam atuando e trabalhando, um por ser biólogo e trabalhar em uma empresa que presta serviços e vende material para hospitais e clinicas, e a minha irmã, psicóloga que atua na área de atenção e reabilitação a pessoas com necessidades especiais, e ou ficar no Guesb, resolvi me juntar a minha Ialorixá, seus filhos biológicos e mais umas quatro pessoas, na assistência a pessoas em vulnerabilidade social, no entorno do terreiro.

O GUESB, está localizado no bairro do Village Campestre II, situado dentro do que se acostumou chamar de Cidade Universitária, pois a UFAL, tem seu campus sede aqui e ajudou na povoamento da região. O Ilê, possui um instituto chamado INAÊ, que desde a sua fundação, há mais de 25 anos, oferece cursos de capacitação, oficinas para moradores do bairro, além de já ter abrigado uma creche e ser casa de acolhimento para pessoas usuárias de drogas.

Durante a pandemia, recomeçamos a distribuição de sopas e mascaras de pano, duas vezes por semana, sempre as quartas e sábados. Além da distribuição da sopa, conseguimos com a ajuda de instituições parceiras a compra de toneladas de alimentos e produtos de higiene, que deu para produzir mais de 300 cestas básicas e mais de 300 kits de higiene, o que não representa nem a metade das famílias que necessitam e estão precisando serem assistidas, já que muitas pessoas não conseguem trabalhar por conta das medidas impostas pelas autoridades. As cestas básicas foram distribuídas, mas a sensação que ficou naquele momento, era de impotência, cadastramos 300 famílias, mas a todo momento batiam na porta do instituto perguntando se ainda era possível fazer o cadastro ou receber cestas.

Foram dias montando um plano que desse para atender o maior número de famílias possíveis, sem que estas e até a gente mesmo, não corressem os riscos de contrair a doença e o vírus. Usando luvas, mascaras, uma roupa feita a partir do tnt, com álcool em gel e respeitando o distanciamento social, temos feitos todas as ações que estão ao nosso alcance.

Entre uma atividade e outra, ainda tivemos que nos deparar com o desencarne da nossa Avó de Santo, a Mãe de Santo da nossa Ialorixá, que desencarnou aos 104 anos de idade, por causas naturais. Sua passagem foi repentina, estava lucida, conversando com todo mundo e de uma semana para outra foi perdendo suas forças, foi fazendo sua passagem. Seu nome, Mãe Celina de Oxalufã, a mais velha Ialorixá de Alagoas, cuja sua bisavó de Santo teria sido, Tia Marcelina, conhecida por ter sido a Mãe de Santo violentada e morta durante os ataques ocorridos no episodio que ficou conhecido como “Quebra de Xangó de 1912”.

Vó Celina não teve seu funeral como se pede dentro dos preceitos da Umbanda, seu corpo foi velado em apenas três horas, dentro de uma das capelas que ficam em um cemitério particular, do qual só podiam participar 20 pessoas, entre familiares, filhos e filhas de santo, e outros representantes das religiões de matriz africana em Alagoas. Desde então e pelos próximos dias, até 27 de maio, nosso terreiro está de luto, até que se completem os trinta dias do desencarne da nossa Vó. Todos os pejis de orixás estão fechados, suas cortinas estão encobrindo nossas quartinhas, nossos ibás, nossos assentamentos. Nenhuma oferenda pode ser depositada, nenhuma vela pode ser acesa, nenhum atabaque pode fazer ecoar seu som.

Vó Celina nos deixou um patrimônio religioso que vai além dos preceitos e fundamentos transmitidos cotidianamente em cada prática e ritual dentro da Umbanda. Deixou a cargo da nossa Ialorixá, Mãe Neide Oyá d’ Oxum, todo o acervo com imagens, assentamentos, ferramentas e quadros que estavam em sua posse, em seu terreiro, que ela já tinha herdado do seu avô de santo. Então é um acervo que tem mais de 100 anos de história, de ancestralidade. Já tivemos que retirar tudo de dentro do terreiro e trazer para o GUESB, foram três dias indo e voltando várias vezes, trazendo cuidadosamente cada peça, cada objeto, para que em alguns meses, o objetivo de abrir um memorial seja concretizado.

Estou no Guesb desde 2015, e nesses cinco anos, desde que fui escolhido por Oxumarê como seu filho e o responsável por zelar e cuidar da sua tranqueira, nunca pude aprender e experienciar tanta coisa, tantos ensinamentos, tantos ritos e rituais, tantas práticas, como eu tenho tido a possibilidade agora, durante esses dois meses que tenho ficado aqui, no isolamento.

Aqui, é o Tempo Orixá, que dita e comanda nossas ações, nos permite exercitar outros ritmos, outras prioridades, me fazendo entender que nossos caminhos, por mais planejamento que façamos, estão fixados e estabelecidos em comum acordo com o orixá que nos cuida, nos guia e nos protege. O mundo exterior parece ter menos significado estando aqui. Não estou e não estamos desligados cem por cento da realidade que nos cerca e nos remete a este isolamento, mas estou olhando para ela de outro modo, principalmente em relação a muitos dos meus colegas de PPGAS e muitos outros amigos e familiares.

Estou aqui com mais 10 pessoas, cada uma tem sua opinião, cada uma tem seu próprio caminho, sua própria realidade, tem seu próprio mecanismo de defesa e entendimento sobre a pandemia do Covid-19, mas o que nos une enquanto coletivo e pensamento em comum, é que estamos passando por isso, com os olhares e ações voltados para nossos Orixás, para a prática da caridade, para os Pretos Velhos, além das medidas e precauções que tomamos em relação ao vírus.

Aqui é um ambiente bastante grande, com bastantes árvores, algumas frutíferas, bastantes plantas, e eu tenho tido contato bastante particular com elas, com algumas delas. Aprendendo suas funções, aprendendo sobre sua eficácia e em quais rituais e banhos elas podem ser usadas, utilizadas, as quais orixás elas correspondem. Aprender a manipular cada uma é sinal de aquisição de conhecimento e de status dentro do terreiro. Aprender a fazer banhos e chás, compartilhar com os mais velhos e mais novos, é sinal de que há continuidade do que se aprendeu e está pronto para repassar, bem como sinal da sua própria evolução mediúnica.

Os banhos nesse processo de pandemia e isolamento têm servido para reorganizar nossas lutas diárias, lutas cansativas em torno do nosso projeto social, bem como de estabelecer diálogos permanentes com o campo do sagrado, do mais que humano também como forma de proteção e descarrego contra as energias pesadas, contra os fluidos e pensamentos negativos que surgem a partir do estado de pandemia. Os banhos servem de alimento para a fé, para a renovação do nosso espirito e das nossas relações comportamentais.

Durante todo esse período, pássaros, cigarras, gatos, estão sendo companheiros inseparáveis, folhas caem, forram o chão, flores nascem, morrem, abelhas, borboletas, insetos, fazem delas seus alimentos, é o ciclo da vida fazendo e se refazendo a todo instante, nos permitindo entender que é possível que mundos sejam refeitos, que lugares e ambientes sejam repovoados, ganhem vida novamente, que eles e elas podem sim viver sem tanta interferência humana, que eles e elas podem sim nos ensinar a viver em outras frequências, em outros sistemas de existência.

Hoje, domingo, 17 de maio de 2020, passarei a ultima noite aqui no GUESB, pois se eu fiquei aqui até agora, foi também por conta do rituais da tão tradicional feijoada da Vovó Maria Conga. Dá ultima vez que tentei embarcar ainda no começo de abril, fui avisado pela minha Mãe de Santo, que Vovó Maria Conga gostaria muito de contar comigo aqui, nos dias 12 e 13 de maio mesmo que não tivesse a tão aguardada celebração festiva como já era tradição. O que acabou de fato, não acontecendo. E que eu só poderia voltar para Florianópolis depois dessa data. O que está acontecendo agora, talvez enquanto muitos de vocês leem este relato.

Este ano, por conta da pandemia e do luto, a feijoada foi feita presencialmente apenas pelas 11 pessoas que estão aqui isoladas, porém, depois de muito negociar e entender os limites da exposição do ritual, decidimos fazer uma live através do perfil criado no instagram apenas para os filhos e filhas de santo da casa, para que ao menos o rosário dos pretos velhos, que fazemos antes de começar a preparação da feijoada, todos e todas pudessem assistir, o que acabou acontecendo, com pequenas pausas, porque a casa da vovó Maria Conga é o único lugar dentro do terreiro em que nem a internet via wi-fi funciona e nem a internet via operadora de telefonia consegue pegar bem.

Depois do rosário dos Pretos Velhos, então nos dirigimos a cozinha da casa da Vó, onde toda a feijoada é preparada, geralmente fazemos de 12 a 14 panelas de barro, em fogo a lenha, no entanto, este ano só foram feitas três. A feijoada passa a madrugada sendo preparada, às 04:30 da manhã, levantamos a mesa da comida dos Eguns  e ao meio dia, servimos a comida dos Pretos Velhos e Pretas Velhas, e a noite, a gente começa o ritual do ajeum, sentados e sentadas todos e todas ao redor da Vó Maria Conga. Por não poderem entrar no terreiro, alguns filhos e filhas de santo, vieram buscar um pouco da feijoada na porta do terreiro e depois voltaram para suas casas e através de mais uma live, puderam acompanhar o ajeum junto a nós. Foi a ajuda da tecnologia que proporcionou a união do Grupo Espirita Santa Barbara em tempos de distanciamento social, no momento mais esperado do calendário litúrgico do nosso Ilê.

Esses dois meses aqui, diante do isolamento que continua em muitos lugares do país, serviu como rito de passagem, de preparação para as etapas, que serei obrigado a enfrentar a partir de agora. Essa experiência me fortaleceu como humano, como espirito em constante processo de evolução e missão, fortaleceu meu senso de pertencimento ao meu Ilê, a minha ancestralidade, no cultivo da fé, na reordenação dos meus sentimentos, dos meus pensamentos. Serviu de alimento para meu Orí, para compreensão do meu dever longe daqui e quando aqui estiver.

Que os caminhos que traçarei depois daqui, sejam sempre a continuidade do que aqui eu experienciei, plantei e semeei. Ontem, sábado, 16 de maio de 2020, preparei meus últimos três caldeirões de sopa e fiz questão de distribuir, foi meu ultimo rito de passagem, foi o encerramento de mais uma missão dada a mim, pelos orixás.

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[1] Doutorando do PPGAS-UFSC, estudante pesquisador membro do CANOA/PPGAS- UFSC; estudante pesquisador colaborador do IBP/ PPGAS- UFSC. Yaó de Oxumarê do GUESB, em Maceió- AL.

[2] Projeto Jornadas Antropológicas 2019.

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ARTIGO

El autismo en medio del nuevo SARS – Juan Pablo Montero

Introdução: O autor de esta reflexão é um aluno de Colômbia que chegou no Brasil em fevereiro durante Carnaval para iniciar seu estágio sanduíche de doutorado no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, UFSC. Está realizando seu doutorado em antropologia na Universidad de los Andes, orientado por Professor Carlos Uribe. Como faço parte do comitê de orientação de Juan Pablo, um estágio no Brasil foi considerado uma excelente oportunidade de conhecer outra realidade acadêmica e também de receber orientação presencial de mim. Juan Pablo passou as primeiras duas semanas em adaptação a este contexto bastante diferente de seu pais – buscando lugar adequado para morar, entregando seus documentos para poder usufruir das facilidades da UFSC (biblioteca, restaurante, etc.) e decidindo que disciplina para cursar. Eu tive somente uma oportunidade de encontrar com ele antes da UFSC fechar e todos fomos instruídos a ficar em casa. As expectativas e possibilidades de seu tempo em Florianópolis ficaram frustradas, mas durante o tempo que estava conosco, ele continuou escrevendo sua tese e encontrando comigo virtualmente. O que segue é a primeira versão do capítulo final de sua tese sobre autismo. Ele fez o melhor possível de uma experiência frustrada. Agora finalmente conseguiu marcar um voo humanitário para seu país natal, e perdemos a oportunidade de lhe conhecer melhor.

Florianópolis, Esther Jean Langdon

Acesse o texto em: Montero, Juan Pablo. Autismo durant COVID-19.


 

Vídeo do 1º Webinar da WCAA, editado pelo NAVI/UFSC.

(As legendas aparecem quando se clica em CC na margem inferior).

https://www.waunet.org/wcaa/videos/index.phtml

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Artigo publicado em Boletim n. 20 | Cientistas sociais e o coronavírus. SP, ANPOCS, 2020.

Download do boletim em PDF

Mortes Belas, Mortes Boas, Mortes Malignas e a Covid-19

Por Carmen Rial

A Louis-Vincent Thomas

Em uma das minhas últimas visitas ao apartamento de meu orientador de doutorado, o antropólogo africanista Louis-Vincent Thomas, no bairro elegante de Saint Mandé, em Paris, fiquei espantada com o modo pessoal de lidar com a morte, ele que era um especialista no tema. Seu apartamento estava forrado com fotografias da esposa, falecida havia pouco. Literalmente forrado, desde que se descia do elevador, no corredor, grandes banners reproduzindo fotos de diferentes épocas, muitas dela do seu rosto, fotos de identidade aumentadas. “É impressionante o número de fotos que uma pessoa tira durante a vida”, me comentou ao ver meus olhos fixados nelas. “Basta procurar nas gavetas, e lá estão elas”.

Fui uma de suas últimas orientandas, provavelmente a última, pois era o Doyen da Universidade de Paris V, e só continuava a me orientar porque eu estava com ele desde antes da aposentadoria. Porque orientou uma tese sobre a globalização cultural e os fast-foods? Além do tema da morte, Thomas se interessava, pela antropologia do futuro, pela ficção científica – “ficção científica”, aliás, é um nome que faz rir os franceses que não entendem como uma “ficção” possa ser qualificada de “científica”; em francês é o inverso, chamam de “science-fiction’.
Thomas faleceu em janeiro de 1994, menos de dois anos depois dessa visita. Pelo que lembro de um dos seus seminários na Sorbonne, acho que classificaria a sua como uma “morte boa”: tinha mais de 70 anos, estava no metrô, teve um ataque cardíaco fulminante, voltando de uma entrevista a uma rádio ou TV. Foi com ele que aprendi a distinguir “mortes boas”, “mortes belas” e “mortes malignas”. Há também toda uma reflexão sobre a “morte programada”, a eutanásia, cada vez mais presente nas reflexões feministas por exemplo, mas essa deixo de lado aqui.
Diferentes sociedades e grupos elegem diferentes mortes como sendo belas, boas ou ruins. Na Grécia antiga, Thomas ensinava, a morte ideal para os gregos, a bela morte, seria a de um jovem guerreiro, arco à mão, defendendo a sua cidade; o que me faz pensar na idealização dos mártires na Palestina. Entre muitos grupos africanos tradicionais, a boa morte é a de um velho que se preparou para o acontecimento da sua morte, e deixa a vida rodeado pelos seus, sem muito sofrimento. Em nossa sociedade, a boa morte é a morte súbita, inconsciente e sem dor. Morrer dignamente seria deixar a própria vida sem ter passado pela degradação física ou mental, sem sofrer ou fazer sofrer (ainda que o cristianismo, entre outras religiões, valore o sofrimento físico).
Em muitas sociedades tradicionais, a pior das mortes é que ocorre ao longe, solitariamente. Ela é considerada como muito prejudicial aos que morrem e aos que ficam. O cadáver tem um peso simbólico determinante, é ator do ritual funerário. O repatriamento dos corpos mostra que isso também vigora entre nós, o corpo morto continua sendo visto como central. Ao contrário, a ideia de um cadáver ausente, o corpo que não é encontrado, é uma prova difícil de ser aguentada para o equilíbrio dos sobreviventes. O corpo desaparecido ou não identificado, numa guerra, catástrofe ou em um acidente, produz um vazio insuportável. Conhecemos isso muito bem aqui na América Latina, a crueldade suprema dos “desaparecimentos” durante as ditaduras militares, onde a liquidação física da vítima não era suficiente. Impingia-se aos que ficavam a ausência de todas as referências das circunstâncias da morte: a data, o lugar, o modo. A falta desses detalhes como que roubavam a morte, e roubavam o luto às famílias, deixando-as como que bloqueadas na fase terrível da negação. As versões oficiais da ditadura recusavam a morte, transformavam-na em um desaparecimento, criando a dúvida terrível sobre a sua realidade. Pois o cadáver é o ponto de apoio do ritual funerário, e isso, para Thomas, de um modo universal, a ponto de podermos ver aí uma essência fundamental da consciência humana.

 

Poder e Imagem de Corpos

Foi com o 11 de setembro que aprendi que os corpos mortos tinham diferentes valorizações para o jornalismo ocidental, dependendo do poder do país de onde eram originados. Esta diferença se revela, por exemplo, na mise en image dos corpos. As câmeras de TV inicialmente mostraram pessoas se jogando das torres em chamas do World Trade Center. Depois, estas imagens foram sendo autocensuradas, pois consideradas muito chocantes para serem vistas pelos norte-americanos. E esta postura permaneceu nos dias seguintes. Vimos corpos sendo levados dos edifícios, depois, nenhuma imagem de feridos ou agonizantes nos hospitais, nenhuma imagem de seus enterros. A julgar pelas imagens, não houve cadáveres nas ruínas do WTC. A morte de milhares de pessoas foi mostrada através de velas acesas, de lágrimas, mas não de corpos mortos.
A imagem dos nossos mortos no mundo ocidental é mostrada (no caso de ser mostrada) com muita cautela, com pudor mesmo. Nenhum corpo morto. Jamais um corpo morto nu. Pois se tratam de indivíduos e merecem respeito. Bem diferente é a postura da mídia ocidental em relação aos mortos e feridos no sul global, especialmente em países muçulmanos – os corpos são expostos, aparecem em valas comuns, em leitos de hospitais, feridos, seminus. São mostrados em close durante um longo tempo. O ápice dessa diferença talvez seja e expressão linguística escolhida pelos norte-americanos para se referir às vítimas civis do exército liderado pelos Estados Unidos nas guerras do Afeganistão e do Iraque: não eram chamadas de “feridos” ou “mortos”, eram ditos “estragos colaterais”. Numa evidente objetificação de seres humanos.
Esta autocensura, ou censura, não é novidade; já ocorreu durante a Segunda Guerra quando os americanos mostravam corpos dos inimigos mas não os dos aliados. Ou nas guerras mais recentes, onde os corpos dos soldados mortos em combate e repatriados em aviões estão sempre em caixões fechados, bandeira norte-americana sobre eles, descarregados com pompa e circunstâncias por batalhões fardados em gala, em tapetes vermelhos, ao som de trombetas.
Corpos nossos não aparecem em imagem mas têm seus nomes gravados em pedra, merecem tumbas individuais (penso no gramado bem cuidado dos cemitérios dos soldados norte-americanos) e merecem monumentos (penso no do Ground Zero, em que a água escorre pela parede para um espelho d’água também de mármore negro, e de lá para um quadrado ainda mais escuro que parece levá-la ao centro da terra. Os nomes dos 2.726 mortos no ataque gravados no granito ao redor do espelho d’água. Penso na França onde cada vilarejo homenageia seus mortos na Guerra de 1914 com um monumento ao soldado desconhecido).
O luto estadunidense por seus 3 mil mortos no 11 de setembro foi e é imenso. Recebem homenagens todos os anos, até recentemente seus nomes são lidos com a presença física do Presidente americano no Ground Zero, suas fotos são mostradas na TV (fotos de quando estavam vivos, evidentemente). Muito diferente das valas coletivas onde se jogavam os corpos das vítimas do holocausto nazista na II Guerra, ou dos “estragos colaterais” mais recentes. Muito diferente de onde estão os corpos dos emigrantes tragados pelas águas do Mediterrâneo, 1.500 só no primeiro semestre de 2018, alertava a ONU¹ – ali nem se pode falar em enterramento pois se trata de uma “enguamento”, os peixes fazendo as vezes das larvas.

 

A insuportável ausência do corpo

Como será agora, quando o melhor dos cenários indica 100 mil mortos nos Estados Unidos pela COVID-19? Que monumento ergueremos, aqui, nos Estados Unidos, na França ou na Índia?
A COVID-19 não diferencia os corpos dos mortos que são equiparados, estejam em países com maior ou menor poder – é uma pandemia no sentido igualador e global do termo. Todos são estragos colaterais, e tratados como se o fossem – sim, há casos extremos como o de Guaiaquil no Equador, onde os cadáveres putrefatos foram deixados na rua diante do colapso do sistema mortuário, incapaz de gerenciar um número tão elevado de corpos. A todos é negado o velório.
Entre nós, a ausência do corpo só é aceita quando oculto em um caixão recoberto de uma bandeira. A morte da COVID-19, a ausência dos corpos, a ausência de velórios, diminui as chances de uma última relação presencial com o morto, um último momento em que o corpo ainda está no lado da vida, cercado pelos seus. Ao contrário, estamos diante do medo do cadáver, agente ele mesmo de morte, e esse medo inconscientemente provavelmente se traduzirá em uma agressividade em relação ao morto, a uma aversão prematura, mas protetora. As fantasias do contágio do morto, simbólicos, aqui são bem reais.
O ritual do velório, sabemos, enquadra a desordem que a morte produz, a circunscreve, a domina. O velório aqui não existe, em todas as suas etapas, em que o princípio de realidade é deixado de lado. Contemplá-lo, tocá-lo, falar com ele, até beijá-lo são momentos comoventes de rituais de velório e que estarão ausentes nos casos de vítimas da COVID-19. Aos mortos da COVID-19 é negado o respeito da toalete última, esse ritual que busca retirar do cadáver os sinais da morte, todos os signos que poderiam injuriá-lo.
O 11 de setembro mostrou a morte ao vivo e a cores, em escala planetária. A COVID-19 nos permite saber pelo website da Organização Mundial de Saúde², em tempo quase real, por um mapa interativo, quantos morrem em cada país do globo; temos a estatística completa, sabemos suas idades, suas morbidades, se são cardiopatas, se são diabéticos, se pertencem ou não a “grupos de risco”, e às vezes até a origem de sua contaminação. O que não sabemos é que consequências esses milhares (milhões?) de mortos sem velório terão nas subjetividades dos que ficam. Que rituais criaremos? Como suportaremos sem eles tantas mortes que não são belas ou boas?

 

Carmen Rial é Presidente do Conselho Mundial de Associações Antropológicas (WCAA) e professora do departamento de Antropologia da UFSC

 

¹ https://oglobo.globo.com/mundo/onu-alerta-que-15-mil-imigrantes-ja-morreram-no-mediterraneo-em-2018-22924119

² WHO COVID-19 Dashboard 

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Este texto é parte de uma série de boletins sequenciais sobre o coronavírus e Ciências Sociais que está sendo publicada ao longo das próximas semanas. Trata-se de uma ação conjunta que reúne a Associação Nacional de Pós-Graduação em Ciências Sociais (ANPOCS), a Sociedade Brasileira de Sociologia (SBS), a Associação Brasileira de Antropologia (ABA), a Associação Brasileira de Ciência Política (ABCP) e a Associação dos Cientistas Sociais da Religião do Mercosul (ACSRM). Nos canais oficiais dessas associações estamos circulando textos curtos, que apresentam trabalhos que refletiram sobre epidemias. Esse é um esforço para continuar dando visibilidade ao que produzimos e também de afirmar a relevância dessas ciências para o enfrentamento da crise que estamos atravessando.

A publicação deste boletim também conta com o apoio da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC/SC), da Associação Nacional de Pós-Graduação em Geografia (ANPEGE), da Associação Nacional de Pós-Graduação em História (ANPUH), da Associação Nacional de Pós graduação e Pesquisa em Letras e Linguística (Anpoll) e da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional (Anpur).