Cartas e Manifestações

Nota de repúdio
A coordenação do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social manifesta o repúdio a ação arbitrária, truculenta e desproporcional da polícia federal e militar no episódio ocorrido no dia 25 de março, no campus da UFSC.

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Carta de repúdio

O Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da UFSC manifesta publicamente o repúdio ao pedido de anulação da demarcação da Terra Indígena Morro dos Cavalos e à desqualificação do relatório circunstanciado de identificação e delimitação que sustenta a demarcação.

Os registros históricos e arqueológicos sobre os Guarani na região litorânea do estado de Santa Catarina são fartos e apontam para sua presença já no século XVI, quando da chegada dos primeiros europeus à região. Apesar das lacunas nesses registros, no que diz respeito às variações demográficas e aos deslocamentos dos Guarani na costa ao longo dos séculos, não há dúvidas de que a costa catarinense faz parte de um vasto território guarani na região meridional do Brasil.

No caso específico de Morro dos Cavalos, há registros dessa aldeia realizados durante a construção da BR 101, na década de 1960, o que indica que eles habitavam o local antes da existência da estrada. Contudo, nessa época, a FUNAI não prestava assistência aos índios que vivessem fora de Reservas Indígenas, conforme os princípios jurídicos vigentes. Os Guarani do litoral ficaram, portanto, com seus direitos territoriais não reconhecidos até a promulgação da Constituição Federal de 1988. Em 1993 iniciaram os primeiros procedimentos administrativos na FUNAI para a demarcação da Terra Indígena Morro dos Cavalos. Passaram-se 15 anos de trâmites burocráticos e negociações políticas até que a portaria declaratória fosse publicada, em 2008. A terra foi demarcada fisicamente em 2010.

As obras para duplicação da BR 101 no trecho sul iniciaram em 2005. Naquele ano, o Tribunal de Contas da União publicou um Acordão em que recomendava ao DNIT que o projeto de duplicação contemplasse a melhor alternativa no tocante ao meio ambiente, ao custo da obra e ao direito indígena. Esse projeto de duplicação aconteceu após o início da regularização da Terra Indígena Morro dos Cavalos. São, portanto, dois processos independentes. No entanto, desde a decisão do TCU, representantes do poder judiciário estadual vêm atuando no sentido de inviabilizar o processo de regularização da Terra Indígena Morro dos Cavalos, quando a decisão avalia que a construção dos túneis é a solução mais viável econômica e ambientalmente. Os Guarani propuseram essa alternativa no ano 2000, quando da elaboração do Estudo de Impacto Ambiental da duplicação.

No final de janeiro deste ano, a Procuradoria Geral do Estado de Santa Catarina entrou com um pedido de anulação da demarcação da Terra Indígena Morro dos Cavalos no Supremo Tribunal Federal.  Não cabe neste espaço uma análise dos interesses que estão por trás dessa confusão intencional da opinião pública, provocada por representantes do governo e pelos meios de comunicação, dando a entender que a morosidade nas obras do trecho sul da BR 101 se deve à existência de uma terra guarani que impede a execução da duplicação. A questão é que entre as estratégias usadas para anular a demarcação está a desqualificação dos estudos técnicos realizados por antropólogos. O Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da UFSC enfatiza o repúdio ao pedido de anulação da demarcação da Terra Indígena Morro dos Cavalos e à desqualificação do estudo antropológico que sustenta a demarcação e manifesta apoio a Campanha pela Homologação da TI Morro dos Cavalos que será lançada dia 25 de março de 2014, às 20h na Assembleia Legislativa de SC.

 

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A CPI da ignorância bem calculada.

 

 

Um grupo de deputados federais, membros ao que parece da bancada ruralista, acaba de solicitar a criação de uma CPI que investigue o papel que a FUNAI, o INCRA, diversas ONGs e departamentos universitários desempenham na demarcação de terras indígenas e quilombolas. Sou professor do Departamento de Antropologia da Universidade Federal de Santa Catarina, que ganha um destaque especial nessas denúncias, e fui o orientador da tese de doutorado de Flávia Cristina de Melo, a antropóloga citada nesse documento.  São motivos suficientes para manifestar-me a respeito.

Os nobres deputados passam revista à legislação que regula as terras indígenas e quilombolas; às ações de governo que as implementam, e às dos tribunais que dirimem os conflitos daí decorrentes, e reclamam de que, no meio desses três poderes, a Universidade, junto com essas outras entidades, exerça um outro poder (na opinião deles inadequado e fraudulento) que promove a proliferação dessas terras indígenas e quilombolas.

A Universidade não é um poder da República, mas é a encarnação institucional do saber da República. Quanto ao tema em pauta, esse saber está bem estabelecido. Sabemos que a formação do Brasil impôs um pesado tributo sobre a sua população originária: guerra, integração forçosa, esbulho de suas terras. E recorreu também a um tráfico de seres humanos que, depois de servirem durante séculos ao agro-negócio da cana e do café e a todos os outros afazeres mais duros da economia, receberam uma liberdade formal, mas não um lugar desde donde exerce-la; esse é, se alguém não lembra, a origem da população negra brasileira.

Esse é o passado, e para que a história possa seguir em termos mais pacíficos e mais justos -e, assim, mais realmente prósperos- a República tem adotado políticas  de reconhecimento e reparação, mais generosas agora do que foram no passado. Mesmo assim condicionadas a alguns requisitos que o documento dos deputados revisa:  uma história de resistência, posse permanente das terras nos últimos decênios, etc. A partir da Constituição de 1988, o contencioso histórico tem sido resolvido para muitos, não para todos. Não, precisamente, para os mais afetados pelos esbulhos que continuaram no último século, enxotando os índios -especialmente os Guarani- e os pequenos agricultores negros de um canto a outro de um território que ia sendo loteado e atribuído a outros proprietários, especialmente no sul do país.

Os nobres deputados se escandalizam de que um 14% do território brasileiro seja destinado a grupos indígenas que representam um 0,30% da população, e pensam que isso é um obstáculo para o progresso do Brasil. Deveriam talvez se perguntar por quê a prosperidade do Canadá não está sendo ameaçada por ter destinado aos povos indígenas -pouco mais vultosos lá- um 40% do seu território. Quiçá seja porque a prosperidade de um país não está atrelada à celeridade com que se consomem suas terras e seus recursos naturais com destino a uma exportação lucrativa, e sim a um desenvolvimento digno de toda a sua população, e a uma administração criteriosa do seu meio ambiente. Devem saber que esse 14% é uma parte fundamental da floresta preservada no Brasil. Mas, é claro, os deputados devem fazer parte dessa ampla bancada que entende que também se reservou espaço demais para as matas e as beiras de rio; que a produção pode avançar sempre mais um pouco sobre elas, enquanto um milagre segura o solo e a umidade. Na Universidade sabe-se que esses milagres não existem.

Os nobres deputados se inquietam porque algumas terras reivindicadas para índios e quilombolas tenham um alto valor produtivo ou venal -do qual parecem bem informados. Haverá algum propósito oculto nessas reivindicações? Deveriam lembrar que foi precisamente isso, o valor de suas terras, o motivo para que os mais fracos fossem uma e outra vez expulsos do lugar onde se encontravam há setenta, cem ou duzentos anos. Deveriam explicar também quão miserável deveria ser o valor de uma terra para que eles estimassem razoável destina-la aos seus donos originais, ou aos descendentes dos escravos.

Os nobres deputados se preocupam, com muita razão, pela insegurança jurídica que causam as reivindicações de terras, especialmente para colonos que ocuparam lotes outrora indígenas. Mas  devem saber que injustiças não resolvidas sempre geram insegurança jurídica. Por isso mesmo há muito tempo, em lugar de hostilizar e resistir às iniciativas de instituições indigenistas, universidades e Ministério Público, deveriam ter tomado iniciativas próprias que não fossem, como sempre o foram, as de eliminar, de fato ou de direito, aquelas populações indígenas ou negras que eles só conseguem enxergar como empecilhos; que foram esteios da construção do país mas podem ser já tratadas como bananeira que deu cacho.

O documento dos deputados não alude a essa suspeita, sempre presente em CPIs desse teor, de que as terras indígenas ameacem a soberania nacional, já que com freqüência se situam nas fronteiras do país. Mas talvez não tardará em aparecer também esse bordão, que é uma amostra de malícia ou de ignorância culpável: esses territórios estão nas fronteiras porque as fronteiras foram garantidas pela presença indígena. O caso mais conspícuo pode ser o do Amapá, onde a diplomacia brasileira ganhou uma extensa faixa de terras à Caiena francesa fazendo reconhecer como brasileiros os índios que lá moravam -embora então, como ainda agora, esse índios falassem francês… Os índios tantas vezes acusados de comprometer a soberania são os mesmos que durante séculos, antes mesmo da Independência, foram definidos como “muralhas dos sertões”, a proteger o espaço que viria a ser o do Brasil, e que o continuam a fazer, integrando em grande número os batalhões de selva do exército brasileiro. Bem longe da Amazônia, os deputados também se preocupam com fronteiras: pretendem que os índios Guarani que reivindicam terras no sul do país são, na verdade, argentinos ou paraguaios; o que parece inconteste é que são povos privados de cidadania sobre cujo território foram traçados, sem a mais mínima consulta a eles, os limites desses países. Os deputados entendem que, enquanto as fronteiras se apagam para a expansão do agronegócio brasileiro em territórios vizinhos, elas devem ser aplicadas com rigor para os seres humanos aos que, a um lado e outro da fronteira,  esse prodigioso desenvolvimento deixa sem chão.

Eu entendo, como os deputados, que ONGs e Universidades não deveriam se intrometer em questões de estado que competem aos três poderes constitucionais. É lamentável que estes, e muito especialmente o Legislativo, prefiram advogar por fortunas particulares deixando a outros as tarefas que interessam ao Brasil no seu conjunto: a defesa do seu meio ambiente e o destino do seu povo.

Enfim, vale a pena refletir sobre um detalhe, presente no documento, que tem sido motivo para ataques irônicos contra o laudo da antropóloga Flávia de Melo a respeito da aldeia de Mato Preto. Ela teria revelado que a decisão de se deslocar para essa terra foi tomada pelos Guarani durante uma sessão religiosa em que se consumiu um chá alucinógeno. Superstição, irracionalidade misturada a decisões sérias? Os nobres deputados devem ter visitado, em Brasília, o memorial-mausoléu do presidente Juscelino Kubitschek. Lá, num painel bem visível que trata das origens do seu empreendimento, ficamos sabendo como a construção de Brasília foi prevista num sonho profético do santo católico Giovanni Bosco, que quase um século antes da construção da capital viu a civilização cristã chegando naqueles sertões então ocupados “apenas” por índios nus. Se a demarcação de uma terra indígena deve ser posta em dúvida por ter se amparado em visões próprias de uma religião indígena -tão respeitável como qualquer outra, enquanto perdure o pluralismo religioso- caberia também se perguntar o quê fazem esses três poderes ali onde os sonhou um clérigo italiano que jamais pisou terra brasileira.

Florianópolis, 21 de maio de 2013

Oscar Calavia Sáez

Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de Santa Catarina

 

 

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